martes, 23 de septiembre de 2014

IRACEMA E POCAHONTAS: elas realmente existiram?


 Mitos e verdades no indianismo literário


                Estreamos nosso  Café com LETRAS (e com leite também e mel) tocando em um tema apropriado  mas também polêmico: o Dia do Índio. O fragmento de texto escolhido tem a ver não só com o Dia do Índio, mas também com a colonização e o descobrimento do Brasil (22 de abril de 1500). "Iracema - a lenda do Ceará" faz parte da trilogia romântica indianista junto a "O Guarani" e "Ubirajara", todos do escritor cearense José de Alencar. Esta obra é considerada um clássico do Romantismo brasileiro em sua 1ª geração onde o autor emprega uma linguagem poética (prosa poética), tal é sua plasticidade, musicalidade e beleza além de estar carregada de termos indígenas. A primeira geração romântica brasileira tem como características: exaltação da natureza e dos valores e riquezas naturais de nossa terra desembocando no nacionalismo ufanista. Iracema conflui todo este conjunto de características, marcando o encontro da natureza (Iracema) e da civilização (Martim). A palavra "Iracema" é um termo do "nheegatu" (língua indígena da família do "tupi-guarani") que significa precisamente "saída de abelhas", mas para Alencar significava "lábios de mel" tanto que  na obra a protagonista era cognominada "A virgem dos lábios de mel". Além disso,  se lida ao revés temos um anagrama da palavra "AMÉRICA".  

Muita gente associa Iracema com Pocahontas, por serem as duas personagens protagonistas de obras literárias e cinematográficas. Entretanto, essa associação não é equânime tampouco real. Primeiro, porque Iracema é puro fruto da genialidade de Alencar ao sabor do estilo romântico o qual estilizava e retocava bastante o nosso indígena, que nunca usou roupas ou construiu impérios como os Incas por exemplo. Desta forma, a virgem dos lábbios de mel  nunca existiu, apesar de haver referências a personagens históricos na obra literária como é o caso  do personagem dedicado a Martim Soares Moreno, colono português que participou em 1603 da primeira expedição ao Ceará. Por outro lado, a indígena Pocahontas, a pesar dos relatos a descreverem como uma "princesa" por ser filha do chefe Powhatan, da tribo algonquina  (Virgínia), a norte-americana, sim realmente existiu. Seu verdadeiro nome era Matoaka; entretanto, era conhecida por seu apelido: Pocahontas ("Pequena Silenciosa") .

Único retrato de Pocahontas
 por Simon van der Meer  (1616)


       No caso da índia norte-americana o que há de mito é o seu "affair" com  o desbravador inglês, Sir John Smith pois na época a pequena Pocahontas contava com apenas 12 anos. A verdade é que ela deixou sua tribo para ser levada à Inglaterra e lá se casou com Sir John Rolfe, sendo posteriormente rebatizada com o nome de Rebecca Rolfe. Desta união nasceu Thomas Rolfe, único filho do casal. Desgraçadamente, Pocahontas faleceu dois anos depois de se casar, com somente 22 anos,  em março de 1617 e longe de sua terra.


                                                                    Pocahontas Disney
                                                       


             Pintura de Pocahontas e John Rolfe                                                                      



Estátua de Pocahontas no local de sua morte:
 Igreja de São Jorge, em Gravesend - Kent (Inglaterra)


      Voltando ao tema do índio nacional, nacionalismo e indianismo são  características retomadas anos depois, já no movimento Modernista em sua primeira fase com Oswald de Andrade e Mário de Andrade: Manifesto  Modernista e Macunaíma. Tanto Iracema, como o Macunaíma foram transpostos para as telas da 7ª arte em "Iracema, a virgem dos lábios de mel" (1979), dirigido por Carlos Coimbra com Helena Ramos no papel de Iracema; e "Macunaíma" (1969) de Joaquim Pedro de Andrade  com Grande Otelo no papel principal.

        Em comemoração do dia do Índio, fazemos uma homenagem aos primeiros habitantes daquelas terras, nativos de um Brasil pré-colonial, que nos dias de hoje somam somente 3% do total população brasileira, ao contrário do que ocorreu em outros países latino-americanos, cujo legado e raízes são mantidos e reverenciados até hoje.

       Iracema é a imagem da doçura e da hospitalidade, metáfora da "mãe natureza" ,  cujos lábios adocicou a pena e os versos de José de Alencar, considerado o Patriarca da Literatura brasileira. No fragmento a seguir, nossa heroína (filha de Araquém, o pajé da tribo) tem o seu primeiro contato com Martim, do qual, mais adiante, surgirá uma cativante história de amor. E do fruto deste amor intercultural nasce "Moacir" considerado símbolo do primeiro brasileiro. É a lenda do nascimento de nossa gente: os novos brasileiros do período colonial.



A LENDA DO CEARÁ



"Iracema"-  pintura de Antônio Parreiras (1909)

       Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. 

          Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu talhe de palmeira.

         O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.

       Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.

       Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto. 



 Estátua de Iracema banhando-se
 na Lagoa de Massejana ( Fortaleza)


         Iracema saiu do banho (...). Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste.  A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto dela.

       Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome (...) Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.

       Diante dela e todo a contemplá-la, está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo. Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na face do desconhecido (...).



Estátua de Iracema Guardiã
Praia de Iracema (Fortaleza)


         O sentimento que ele pos nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa que causara. A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.

O guerreiro falou:

— Quebras comigo a flecha da paz?

— Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?

— Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.

— Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de Iracema.

ALENCAR, José. Iracema. São Paulo